polacodabarreirinha

Poesia, música, gracinhas e traquinagens

segunda-feira, outubro 31, 2005



Helena Kolody, o coração da poesia.

Minha amiga Helena era, antes de mais nada, poeta. Falava, respirava, comia, poesia. Risonha, bondosa, nobreza que a velhice coroou com realeza. Uma rainha, elegante nos gestos, magnânima e beatífica com as palavras, quase impossível não se apaixonar por ela.
Doce, terna, a voz parecia encadear tons e sons que diziam mais de céu do que de terra.
O Polaco da Barreirinha, sem dar a mínima para as notícias de sua morte, foi lá e conseguiu esta entrevista, com exclusividade.

Helena, onde você nasceu e como veio parar em Curitiba?

Nasci no dia 12 de outubro de 1912, em Cruz Machado, no interior do Paraná. Meu pai me contou que geara na noite anterior, mas, às 8h, quando eu nasci, o céu estava azul e o sol, àquela hora, já estava com mania de quinta grandeza. Meus pais nasceram na Galícia Oriental, Ucrânia, mas se conheceram aqui no Brasil, onde casaram em janeiro de 1912. Nove meses depois, estava escrito o primeiro capítulo da minha história. Vim para Curitiba já mocinha e me formei em 1931, na Escola Normal de Curitiba. Até 1962, lecionei em Rio Negro, Ponta Grossa, Jacarezinho e, finalmente, em Curitiba.

“Acotovelavam-se risos e conversas de crianças,
Pombos brancos a caminho da escola.

Recordo Curitiba adolescente...
Uma névoa de saudade
me envolve o coração.”

(Trecho de Curitiba, cidade-menina, escrito em 1977)

Você tem uma ligação muito forte com a natureza, ter nascido numa cidadezinha do interior do Paraná, deve tê-la influenciado muito, não?

Com certeza. Embora de sangue eslavo, nasci e cresci como uma verdadeira índia. Me orgulho de me sentir parte viva da natureza. Antes de amanhecer, centenas de pássaros se punham a cantar: eu nunca esqueço isso. Eu me acordava e, fascinada, ficava ouvindo aquilo porque sabia que aquele concerto foram organizado pelo maior dos maestros para embelezar e encher de graça o meu dia. Impregnei-me dessa poesia e hoje só a plagio.

“Vim de meu berço selvagem,
lar singelo à beira d’água,
no sertão paranaense.
Milhares de passarinhos
me acordavam nas primeiras
madrugadas da existência.

Feliz menina descalça,
vim das cantigas de roda,
dos jogos de amarelinha,
do tempo do era uma vez...

Por fim ancorei para sempre
Em teu coração planaltino,
Curitiba, meu amor!”

(Trecho de Saga, poema de 1980)

Parece-me que você saiu ainda bebê de Cruz Machado.

Sim, é verdade. Saí com 2 anos e vivi até os 7 anos em Três Barras. Lá o mundo era meu. Fui muito feliz. Tinha um eco que me respondia sempre duas vezes.

“A voz da noite
diz, baixinho:
esquece... esquece...”

(Estrofe final do poema Voz da Noite, 1986)


“Do tempo, só se sabia
que no ano sempre existia
o bom tempo das laranjas
e o doce tempo dos figos...

Longínqua infância...Três Barras
Plena de sol e cigarras!

(Trecho de infância, poema de 1951)

Além dessa formação poética natural, como a poesia entrou de vez em sua vida?

Eu me criei em dois idiomas, conversava em português com meus irmãos e em ucraniano com minha mãe. Lembro décor até hoje os versos de Taras Cheutchenko, que minha mãe recitava dramaticamente em voz alta, sob a luz do lampião. Não só isso, rezar também eu rezava na língua de minha mãe.

“De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.”

(Estrofe final do poema Lição, de 1980)

Helena, ser professora foi importante para manter a proximidade com a poesia?

Escolhi o magistério por um impulso irresistível de vocação, a poesia foi um imperativo da alma. O magistério e a poesia são duas asas do mesmo ideal. A poeta veio antes da professora. A poesia veio como necessidade de compreender meus sentimentos. Destruí uma boa parte dos primeiros e hoje me arrependo. É que eu considero meus primeiros livros os mais espontâneos, que mantinham as cores vivas de minhas tonalidades emocionais.

Abismal

Meus olhos estão olhando
De muito longe, de muito longe,
Das infinitas distâncias
Dos abismos interiores.
Meus olhos estão a olhar do extremo longínquo
Para você que está diante de mim.
Se eu estendesse a mão, tocaria a sua face.

(Escrito em 1941)

Você teve aquele famoso bloqueio após a publicação do seu livro A Sombra no Rio, o que aconteceu?

Fiquei treze anos sem escrever uma linha. Esse silêncio acabou se transformando num divisor de águas. Duas faces se apresentaram claramente: a primeira, mais lírica; a segunda, sem perder o lirismo, mas mais filosófica.

O que é o ato de escrever para você?

É minha vida, meus sonhos. Quando começo a sonhar com palavras, é come se um deserto inteiro começasse a florescer. È sempre por prazer que eu escrevo. Às vezes eles saltam prontos na minha frente. São os poemas que chamo de vivíparos (viu só no que dá entrevistar uma professora de biologia?), geralmente, estavam hibernando dentro de mim. Foi assim com este:

Sempre madrugada

Para quem viaja ao encontro do sol,
É sempre madrugada.


Mas tem um dos meus poemas mais citados, que levou um período de dois anos para ser gestado. É o que chamo de poema ovíparo (rs).

Dom

Deus dá a todos uma estrela.
Uns fazem da estrela um sol
Outros nem conseguem vê-la.

Esse poema, viu, Thadeu?, me veio em partes. Quando ele nasceu era só o primeiro verso. Ficou dois anos me incomodando na gaveta. E um dia resolvi que era hora de acabar com ele. (rs)

Helena, temas como morte, solidão e transitoriedade da vida estão sempre presentes em sua obra. E na sua vida?

Também. Assim como na vida de todas as pessoas. É por amor a elas que escrevo. Um desejo que nasce da vontade de mostrar a divindade das palavras. E inaugurá-las mais uma vez, para que cada pessoa, ao ouvi-las, entre em comunhão com elas e, ao repeti-las, que faça como se ela mesma as dissesse.

Sem aviso

Sem aviso,
O vento vira
a página da vida.

(1988)

Ensaio

A solidão da vida:
Longo ensaio
Da solidão da morte.

(1964)

Helena, estes seus lindos olhos azuis já viram muita coisa neste e no outro mundo. O que mais assusta você?

Ah, Thadeu, tem horas que eu tenho a clara sensação que estamos diante do apocalipse. Essa violência desmedida, a explosão demográfica, o império das drogas, essa obsessão pelo consumo e pela velocidade. Tudo inútil, o ser humano só precisa de amor, carinho e amizade. O resto é supérfluo.

Lição Moderna

Em lugar do ABC
Aprendem
BTN
FMI
UPC

(1983)

Bom, Helena, blog é blog, você sabe. Então como última pergunta que grande lição a vida te ensinou?

Já acabou?, que pena. Olha, Thadeu, aprendi a conhecer o poder que a palavra tem. E, ao aprender, adquiri consciência da responsabilidade que a palavra gera. Ela tem um valor presente, não há dúvida. Mas seu alcance futuro é incalculável. O que dizemos deixa marcas indeléveis na inteligência e na sensibilidade dos outros.

Prece

Concede-me, Senhor, a graça de ser boa,
De ser o coração singelo que perdoa,
A solícita mão que espalha, sem medidas,
Estrelas pela noite escura de outras vidas
E tira da alma alheia o espinho que magoa.

( 1941)

Esse poema, Thadeu, por exemplo, salvou uma jovem de cometer suicídio. Antes do gesto fatídico, resolveu ler o livro que eu lhe dera de presente. Abriu justamente na página, leu-o e jogou o veneno fora. Imagine, eu tenho vários poemas depressivos naquele livro, e se ela abrisse o livro em um deles? O que teria acontecido? Depois que ela me contou o fato, meus poemas se tornaram mais extrovertidos, mais abertos, mais otimistas. Devo isso àquela moça.

Ok, Helena, a conversa está tão boa que eu não resisto a lhe fazer mais uma pergunta: e o coração da Helena com quem ficou?

(Rs) Hi, eu fui namoradeira, flertei, tive namorados. Me apaixonei perdidamente, tive perdas. Tenho certeza de que Deus me quis poeta. Se eu tivesse me casado, vocês não estariam lendo esses poemas: marido e filhos consumiriam meu temperamento amoroso. Poemas e minhas ex-alunas são meus filhos. Transferi o amor para outra escala. Para mim, o amor ficou sendo só um sentimento, um sonho.


Viagem Infinita

Estou sempre em viagem.

O mundo é a paisagem
Que me atinge
De passagem.

(1980)

4 Comentários:

Às 31 outubro, 2005 , Anonymous Anônimo disse...

Sensibilidade e carinho é o que mais se lê nas entrelinhas. Parabéns.

Julio Okada

 
Às 31 outubro, 2005 , Anonymous Anônimo disse...

Mil.

BB

 
Às 31 outubro, 2005 , Anonymous Anônimo disse...

Uma obra e uma vida que merece todo respeito e consideração.

Ignez Sampaio

 
Às 10 março, 2008 , Anonymous Anônimo disse...

Eu acho que deveriam por mais poemas e poesias da Helena aqui...Pois ela precisa ser bem conheçida por suas obras maravilhosas

 

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